Nunca entendi direito
como meu pai encontrava ânimo para contar estórias para cada um dos meus amigos
que aportassem em nossa humilde residência. Sempre muito atento e solícito,
roubava cada segundo precioso das pessoas que iam ter comigo falando das mesmas
coisas. Aquilo me entediava, enchia de vergonha e também de raiva. Fazia-me
sentir um tolo, pois ficava pensando no que pensavam todos depois que deixavam
o solar do Assis rumo aos seus respectivos destinos.
Certa vez, talvez no
auge de sua insensatez, chegou a dizer que no bosque próximo a nossa casa havia
lobisomens, sacis e tudo mais que pudesse imaginar e que não era muito seguro
ficar até tarde por lá sob o risco de cruzar com alguma dessas criaturas pelo
caminho de volta. Levando em consideração o fato de que morávamos a alguns
quilômetros do centro da cidade, o verde era abundante e também assustador, e
pelo menos nisso meu pai e eu concordávamos. Não foram poucas as vezes em que
senti um medo tremendo de sair da cama para fechar a janela e tentar dormir
seguro. Mas acho que isso era apenas sugestão da minha mente adolescente. Mas
com meu pai, não conseguia entender direito o efeito desse verde e dessa
distância da cidade. Mas se sentia medo como eu, porque não vendia aquilo e ia
embora para a cidade como as pessoas normais?
Aliás, normal era algo
que meu não era. Eu sempre tive essa impressão dele. Minha mãe não agüentou a
barra e saiu fora e as vezes eu dou razão a ela, embora ela nunca mais tenha
voltado para ao menos saber como estou. Tem anos em que ela liga no meu
aniversário e no natal, mas em algumas ocasiões ela deixa furo numa ou noutra
data, já até estou acostumado.
Sempre tive curiosidade
de saber o que motivou a separação, mas também nunca entendi o que poderia
tê-los unidos, pois são tão diferentes. Minha mãe é uma daquelas mulheres fãs de
academia, de roupas justas e toda cheia de fricotes com a saúde. Não come
carne, não ingere álcool, detesta tabaco e qualquer coisa que faça fumaça. Só
anda de bicicleta, pois diz que assim se exercita e ainda ajuda a salvar o
planeta. Meu pai é praticamente um ogro, um dos seres que ele diz que existem.
Aliás, essa é só uma das facetas do meu pai.
Ao contrário da minha
mãe, ele bebe, fuma, adora carne bem mal passada, é totalmente sedentário, tem
uma barriga que parece uma gestante de nove meses, não vai à esquina se não for
de carro e está sempre disposto a não sair de casa se possível. Fico pensando
qual é a fonte de renda do meu pai, já que minha mãe eu sei bem que é corretora
de imóveis e acho inclusive que cuida tanto da aparência para seduzir os
clientes mais saidinhos e cooptá-los a comprar o que quiser vender, mas pode
ser que seja apenas um engano meu. Mas meu pai. Ele é um grande mistério.
Um amigo, o Tula, diz
que ele é bruxo, pois já o viu andando de madrugada pelo bosque do Catonho
sozinho com algum objeto sendo seguro pelos braços, mas que de longe não conseguiu
decifrar o que era. Mas o Tula tem um incinerador dentro do cérebro, só vive
chapado e por isso não dei muita credibilidade ao que disse sobre meu velho
progenitor.
Mas o Sr Ernani, um dos
irmãos portugueses donos da padaria do largo da Batalha, disse que não vai com
a cara do meu pai porque o viu certa vez fazendo caretas estranhas na porta da
igreja da Assunção durante a missa, e achou aquele gesto um tremendo
desrespeito com a casa de Deus. O velho Olavo me disse uma vez que Deus era a
explicação para o inexplicável e com o desenrolar da minha breve vida, pelo
menos com isso eu concordei. Não consigo entender como um ser que é tão bom e
poderoso por essência, permite que tantas maldades sejam cometidas diariamente
por poderosos injustos contra inocentes, animais, contra a natureza que ele
mesmo tivera feito. Acho que se meu pai realmente zombou dos crentes na porta
da Igreja durante a missa, deve ter sido no mínimo engraçado. Gostaria de ter
visto.
Mas pensando bem, meu
pai não tem amigos muito presentes, não tem uma vida social ativa, só sai de
casa para comprar cigarros, aos montes, diga-se de passagem, e adquirir suas
cervejas importadas. Não sei que gosto é esse que o faz beber somente cervejas
européias, fortíssimas, das quais não gosto de nenhuma, mas como bebo escondido
e de graça sou obrigado a beber quieto.
Nas noites frias de
inverno ele tem uns hábitos meio soturnos e que me chocam um pouco. Fica horas
olhando para o céu como se estivesse contemplando o nada absoluto e quando me
perco nos meus pensamentos e perco a briga para Morfeu e recobro-me horas
depois, cadê o velho? Sempre some e volta pela manhã com mau hálito e cara de
poucos amigos. Nunca me dá confiança e quando raramente o procuro para puxar
assunto é como se não estivesse ali, é sempre sombrio e distante.
Nessas horas é que
odeio mais ainda a ideia de Deus. Com tantas pessoas no mundo, justo ele foi
ser meu pai, um cara que me ignora. E ainda de quebra me deu uma mãe que me
abandonou.
Da última vez em que
ele sumiu e voltou pela manhã, resolvi chamá-lo e ter uma conversa séria.
- cara, por que você me
odeia? Disse a ele
Não te odeio.
Respondeu. Então por que não me dá a mínima, finge que não estou aqui, ignora a
minha existência? Você só dá atenção para os outros que vem aqui em casa, não
tem amigos e fica assustando os que ainda têm coragem de vir aqui me ver! Não
agüento mais essa indiferença sua. Te odeio, senhor Olavo!
No momento em que
cheguei ao meu quarto um pavor me acometeu. Meu pai estava sentado na janela
com os olhos vermelhos como duas bolas de fogo, parecia estar rosnando para mim
e disse: vem aqui que quero lhe mostra algo! Eu fiquei resignado, pois ainda
não tinha entendido como ele chegara até ali sem ter passado por mim na escada
e sem ter feito nenhum barulho.
Está vendo aquela mata
ali?
Sim, estou.
É dali que tiro nosso
sustento. De onde? Perguntei.
De cada ser vivente que
anda ou rasteja por essas terras.
Fiquei com muito medo e
disse: não estou entendendo o que o senhor está querendo me dizer.
Ele deu grito ensurdecedor:
AH! Não percebeu que sou um demônio, e que tudo que fiz ate hoje foi para te
proteger?
Um arrepio ergueu todos
os pelos do meu corpo, um suador começou da cabeça até o dedão do pé, um
calafrio na barriga, um pavor que nunca senti nem mesmo nas noites frias de
chuva que dormia com a janela aberta por medo de fechar, e de repente ele vem
caminhando para perto de mim, se aproxima do meu rosto e diz esbaforido: sempre
te amei, filho! Você nunca percebeu porque ainda é jovem, mas a partir de agora
saberá entender o que é o amor!
Deu um sonoro uivo e
saltando pela janela partiu rumo ao bosque do Catonho para mais uma noite...