domingo, 27 de outubro de 2013

Pai e filho

Nunca entendi direito como meu pai encontrava ânimo para contar estórias para cada um dos meus amigos que aportassem em nossa humilde residência. Sempre muito atento e solícito, roubava cada segundo precioso das pessoas que iam ter comigo falando das mesmas coisas. Aquilo me entediava, enchia de vergonha e também de raiva. Fazia-me sentir um tolo, pois ficava pensando no que pensavam todos depois que deixavam o solar do Assis rumo aos seus respectivos destinos.
Certa vez, talvez no auge de sua insensatez, chegou a dizer que no bosque próximo a nossa casa havia lobisomens, sacis e tudo mais que pudesse imaginar e que não era muito seguro ficar até tarde por lá sob o risco de cruzar com alguma dessas criaturas pelo caminho de volta. Levando em consideração o fato de que morávamos a alguns quilômetros do centro da cidade, o verde era abundante e também assustador, e pelo menos nisso meu pai e eu concordávamos. Não foram poucas as vezes em que senti um medo tremendo de sair da cama para fechar a janela e tentar dormir seguro. Mas acho que isso era apenas sugestão da minha mente adolescente. Mas com meu pai, não conseguia entender direito o efeito desse verde e dessa distância da cidade. Mas se sentia medo como eu, porque não vendia aquilo e ia embora para a cidade como as pessoas normais?
Aliás, normal era algo que meu não era. Eu sempre tive essa impressão dele. Minha mãe não agüentou a barra e saiu fora e as vezes eu dou razão a ela, embora ela nunca mais tenha voltado para ao menos saber como estou. Tem anos em que ela liga no meu aniversário e no natal, mas em algumas ocasiões ela deixa furo numa ou noutra data, já até estou acostumado.
Sempre tive curiosidade de saber o que motivou a separação, mas também nunca entendi o que poderia tê-los unidos, pois são tão diferentes. Minha mãe é uma daquelas mulheres fãs de academia, de roupas justas e toda cheia de fricotes com a saúde. Não come carne, não ingere álcool, detesta tabaco e qualquer coisa que faça fumaça. Só anda de bicicleta, pois diz que assim se exercita e ainda ajuda a salvar o planeta. Meu pai é praticamente um ogro, um dos seres que ele diz que existem. Aliás, essa é só uma das facetas do meu pai.
Ao contrário da minha mãe, ele bebe, fuma, adora carne bem mal passada, é totalmente sedentário, tem uma barriga que parece uma gestante de nove meses, não vai à esquina se não for de carro e está sempre disposto a não sair de casa se possível. Fico pensando qual é a fonte de renda do meu pai, já que minha mãe eu sei bem que é corretora de imóveis e acho inclusive que cuida tanto da aparência para seduzir os clientes mais saidinhos e cooptá-los a comprar o que quiser vender, mas pode ser que seja apenas um engano meu. Mas meu pai. Ele é um grande mistério.
Um amigo, o Tula, diz que ele é bruxo, pois já o viu andando de madrugada pelo bosque do Catonho sozinho com algum objeto sendo seguro pelos braços, mas que de longe não conseguiu decifrar o que era. Mas o Tula tem um incinerador dentro do cérebro, só vive chapado e por isso não dei muita credibilidade ao que disse sobre meu velho progenitor.
Mas o Sr Ernani, um dos irmãos portugueses donos da padaria do largo da Batalha, disse que não vai com a cara do meu pai porque o viu certa vez fazendo caretas estranhas na porta da igreja da Assunção durante a missa, e achou aquele gesto um tremendo desrespeito com a casa de Deus. O velho Olavo me disse uma vez que Deus era a explicação para o inexplicável e com o desenrolar da minha breve vida, pelo menos com isso eu concordei. Não consigo entender como um ser que é tão bom e poderoso por essência, permite que tantas maldades sejam cometidas diariamente por poderosos injustos contra inocentes, animais, contra a natureza que ele mesmo tivera feito. Acho que se meu pai realmente zombou dos crentes na porta da Igreja durante a missa, deve ter sido no mínimo engraçado. Gostaria de ter visto.
Mas pensando bem, meu pai não tem amigos muito presentes, não tem uma vida social ativa, só sai de casa para comprar cigarros, aos montes, diga-se de passagem, e adquirir suas cervejas importadas. Não sei que gosto é esse que o faz beber somente cervejas européias, fortíssimas, das quais não gosto de nenhuma, mas como bebo escondido e de graça sou obrigado a beber quieto.
Nas noites frias de inverno ele tem uns hábitos meio soturnos e que me chocam um pouco. Fica horas olhando para o céu como se estivesse contemplando o nada absoluto e quando me perco nos meus pensamentos e perco a briga para Morfeu e recobro-me horas depois, cadê o velho? Sempre some e volta pela manhã com mau hálito e cara de poucos amigos. Nunca me dá confiança e quando raramente o procuro para puxar assunto é como se não estivesse ali, é sempre sombrio e distante.
Nessas horas é que odeio mais ainda a ideia de Deus. Com tantas pessoas no mundo, justo ele foi ser meu pai, um cara que me ignora. E ainda de quebra me deu uma mãe que me abandonou.
Da última vez em que ele sumiu e voltou pela manhã, resolvi chamá-lo e ter uma conversa séria.
- cara, por que você me odeia? Disse a ele
Não te odeio. Respondeu. Então por que não me dá a mínima, finge que não estou aqui, ignora a minha existência? Você só dá atenção para os outros que vem aqui em casa, não tem amigos e fica assustando os que ainda têm coragem de vir aqui me ver! Não agüento mais essa indiferença sua. Te odeio, senhor Olavo!
No momento em que cheguei ao meu quarto um pavor me acometeu. Meu pai estava sentado na janela com os olhos vermelhos como duas bolas de fogo, parecia estar rosnando para mim e disse: vem aqui que quero lhe mostra algo! Eu fiquei resignado, pois ainda não tinha entendido como ele chegara até ali sem ter passado por mim na escada e sem ter feito nenhum barulho.
Está vendo aquela mata ali?
Sim, estou.
É dali que tiro nosso sustento. De onde? Perguntei.
De cada ser vivente que anda ou rasteja por essas terras.
Fiquei com muito medo e disse: não estou entendendo o que o senhor está querendo me dizer.
Ele deu grito ensurdecedor: AH! Não percebeu que sou um demônio, e que tudo que fiz ate hoje foi para te proteger?
Um arrepio ergueu todos os pelos do meu corpo, um suador começou da cabeça até o dedão do pé, um calafrio na barriga, um pavor que nunca senti nem mesmo nas noites frias de chuva que dormia com a janela aberta por medo de fechar, e de repente ele vem caminhando para perto de mim, se aproxima do meu rosto e diz esbaforido: sempre te amei, filho! Você nunca percebeu porque ainda é jovem, mas a partir de agora saberá entender o que é o amor!
Deu um sonoro uivo e saltando pela janela partiu rumo ao bosque do Catonho para mais uma noite...


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