quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O conto

Sentado sob a sombra de uma frondosa amendoeira ( e porque não?), sobre a firmeza de uma rocha esculpida pela natureza milhões de anos antes de minha chegada à Terra, assistia atônito o vai e vem das pessoas que sob uma chuva torrencial lavavam suas almas e buscavam um rumo para seus destinos.
Cigarros acesos e uma espessa nuvem de fumaça, davam a sensação de que o tempo havia retrocedido e parado mais ou menos por volta dos anos de 1970. Os carros ultramodernos e seus potentes auto falantes traziam à tona o tempo e o espaço. Uma multidão ávida por qualquer coisa que lhes fizesse fugir de sua rotina, se amontoava sob os poucos espaços que existiam nos poucos abrigos improvisados surgidos da necessidade de não molhar-se no último dia ano e assim evitar que a data fosse estragada por uma eventual gripe, ou coisas do tipo. Dessa forma iniciei o último episódio do ano que passou.
Quando nos colocamos diante de um desafio, seja ele qual for, o medo do desconhecido sempre nos acomete e traz consigo a prudência e um olhar mais crítico das coisas. Meu último desafio foi uma viagem. Mesmo tendo feito o trajeto algumas vezes, sempre fico com um frio na barriga, já que conheço os imbróglios que seguirão ao longo do extenso trajeto entre minha casa e a Vila de Trindade. Enfim, esse era o grande desafio do ano, sair e voltar pra casa são e salvo.Aliás, esse é o desafio da maioria das pessoas que conheço ou de quem já ouvi falar. Não conheço ninguém que saia de casa com a missão de não voltar. Pode até ser que haja essa pessoa, mas ela é tão rara que prefere o anonimato.
Ainda envolto na atmosfera da viagem é que me pus a sentar e ver a movimentação do povo. Alguns acidentes nas sinuosas curvas da Br 101 estavam vivos e quentes em minha memória recente e me deixaram um pouco menos ativo que o costume, dai minha posição de observador. A quantidade de drogas ilícitas exibidas como troféus me chamavam muito a atenção, sobretudo a figura jovem e inconsequente da maioria dos que as exibiam. Eram muitos e muita a oferta. Em poucos minutos já era possivel ver uma certa homogeneidade física e comportamental dos usuários. Concomitantemente, familias alheias a tais cenas de destruição passeavam num cenário simbiótico que ali se instalava.
Minha moradia nessa empreitada era bem rudimentar, tratava-se de uma barraca erguida sob uma lona de 3x3 num terreno acidentado, onde pagávamos para obter luz elétrica e um banheiro mal cuidado. De dentro da barraca era possivel fazer uma visualização bem ampla de tudo que ali estava ocorrendo, ao mesmo tempo em que me deleitava da presença de minha amada.
Tal qual uma cena de filme de terror bem lado B, tive um sonho, onde estava escrito o último episódio de minha saga: Bebia um gole de vodka, obeservava as pessoas, voltava para a barraca, dizia à minha mulher que não queria mais ficar ali, entrava no carro e na volta para casa....partia. Partia solitário.
Não dava mais para dormir, o diálogo ficou impossivel, assim como impossivel foi acalmar minha caucasiana mulher, que àquela altura bradava comigo por ter lhe partilhado o mais intimo de meu sonho. Dizia ela: você é louco? para que ficar falando essas coisas? Que maluquice!!! Inquieta, pegou várias vezes o telefone e ligou para seus familiares para certificar-se de que nada de ruim lhes havia acontecido. E quanto mais certa estava de que nada de anormal ocorrera, com mais raiva ficava de mim e eu sem poder explicar o que me ocorrera. Sentia-me estranho com aquela sensação, com aquele sonho, mas também tinha a certeza de que parecia tudo muito real. Cheguei ao cúmulo de ver o sangue escorrendo pelo meu rosto, descendo pelo meu corpo, onde pude perceber que não era mais eu quem ali estava, mas um rascunho deformado daquilo que um dia houvera sido.
Após as festividades, recompondo-me a fim de desfrutar da presença de Morfeu, o sonho viera aviltante e tirou-me o fôlego!!! Assustado, recorri ao copo de água, mas nada me fazia voltar a dormir, quando um hiato entre o bocejo e uma virada de lado fez com que minha mulher visse-me acordado com as pupilas dilatadas de medo.
O que houve? Disse. O tal sonho voltou a te atormentar? Assim você me assusta! Quando o dia amanhecer, vamos embora, ok!
Mais que depressa, disse-lhe: Sim! Preciso sair dessa tortura.

Tortura maior estava por vir. Cada mala, sacola, ou embrulho que era posto dentro do carro, fazia com que ansiedade aumentasse e o medo circundasse nosso ser. No meu íntimo me culpava por ter tido aquelas sensações e contado para ela. Agora éramos dois assustados, reféns do medo, da estrada, da chuva, do imprevisível.
As molas postas, despedimo-nos de todos e ligamos o carro. Tudo bem? perguntou-me. Sim, respondi. Meus batimentos cardíacos estavam mais acelerados que os de um goleiro na hora do gol, disse a ela. Prontamente, com um sorriso amarelado: Belchior!
As pessoas iam passando pela janela e quando nos afastamos um pouco mais do núcleo da vila, com o rosto pálido e suado, fiz o sinal da cruz, como quem pede ajuda aos céus porque está diante do inusitado.
A estrada foi ficando mais íngrime, o medo mais agudo, o pânico imperava no interior do carro e um estrondo no motor rompemdo o silêncio, indicou que precisávamos parar ali. Sussurrei: Não acredito! E ela: o que foi isso, amor?
Não sei! Vou descer e ver. Abri a tampa do motor e aparentemente tudo estava normal.
Entrei, tornei a ligar o carro, que sem nenhum problema pegou. Vencendo a inércia e a gravidade, rompíamos bravamente a serra. Na descida outra vez um estampido no motor. Mais uma vez paramos e nada. Chegamos a Br101 e alcançamos rapidamente velocidade, e meio abobalhado ia me acalmando, quando o carro sorrateiramente parou. Nesse instante, um carro que vinha na outra faixa perdeu o controle, invadiu a pista em que estávamos, e se não estivéssemos parados no acostamento resmungando por conta da falha no motor, seríamos atingidos em cheio. No carro que se acidentou estava um casal, que tal qual o sonho que tivera nas outras noites, despediram-se do mundo real com o sangue escorrendo-lhes o rosto....

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